O “ficar” na adolescência e paradigmas
de relacionamento amoroso da contemporaneidade
RESUMO
O ficar é um relacionamento afetivo bastante popular entre os adolescentes
e caracteriza-se por ser breve, passageiro, imediatista, volátil e
descompromissado. Análises comparativas demonstram que o ficar obedece
à mesma lógica que rege outros relacionamentos. Seu caráter provisório e
efêmero está presente, por exemplo, na abreviação dos vínculos empregatícios
e na rarefação de relacionamentos outrora sólidos e duradouros tais como
os de vizinhança e familiais. Vive-se hoje uma condição de aceleração do
tempo, alargamento de espaço e movimentação humana sem precedente,
impeditiva de vinculações psicossociais estáveis e prolongadas em todos os
planos da vida: do amor ao trabalho.
Palavras-chave: Ficar; adolescência. Relacionamento. Afetividade.
Contemporaneidade.
“To stay with” (“ficar”) among teenagers
and paradigms of love ties nowadays
ABSTRACT
“To stay with” someone (“ficar”) is a quite popular affective type of
relationship among teenagers and it is characterized by being brief, fleeting,
immediate, fickle and without commitment. Comparative analyses show that
“to stay with”(“ficar”) follows the same logic which governs fixed ties in
other types of relationship. Its particularly provisory and fleeting feature is
found, for example, in professional ties in short-term employment, in
relationships which were once long-lasting and steady, such as that among
neighbours, not to mention family ties. Nowadays, one lives an unprecedented
process of time acceleration, space expansion and human rush, which makes
it impossible to establish stable and lasting psychosocial ties at all levels of
life: from love to work.
INTRODUÇÃO
Mais do que outras idades da vida, a adolescência passou a ser reconhecida
e representada como um período de forte presença das chamadas “influências so-
ciais” no funcionamento psicológico e na constituição do sujeito. As figurações
sobre o adolescente e a adolescência aludem, freqüentemente, e não é de hoje, a
conflitos com o mundo, com os pais e com os adultos. Imagens de rebeldia,
inconformismo, idealismo, vanguardismo, mudança, revolução e tantas outras alu-
sivas a confrontos e ao espírito de transformação do mundo estiveram bastante
associadas a esse período da vida. Aliás, tais imagens foram exaustivamente utili-
zadas para a instituição dessa fase da vida como um período singular, diferenciado
dos demais e altamente valorizado.
A adolescência, sobretudo no século XX, foi elevada como representante e
expressão máxima da juventude, da potência, da beleza, da liberdade, do gozo, do
espírito crítico e contestador, do progresso, da disposição para a mudança e de
tantos outros atributos que a tornaram uma fase bastante prestigiada e cobiçada. É
verdade, também, que essa fase foi vista como momento de vivência das grandes
crises (afetivas, emocionais, de identidade, de valores etc.) e sofrimentos. Porém,
tais crises foram consideradas positivas e construtivas já que o saldo final sempre
representava um ganho e melhoria do sujeito. Aliás, a própria idéia de crise alude
a movimento, mudanças, ruptura e desestruturação que, embora possam estar as-
sociadas a sofrimentos, trazem como significação básica a potencialização da vida
e a dinamização do sujeito e do seu mundo. A chamada “crise da adolescência”
sempre foi referida com signos situados em corredores semânticos meliorativos
diferentemente de “crises” de outras idades semiotizadas em corredores semânti-
cos pejorativos, como é o caso da aludida “crise do envelhecimento” ou da “apo-
sentadoria”, inevitavelmente associadas a imagens de degradação, desvitalização,
enfraquecimento etc..
Tanto a ciência como o senso comum acabaram por eleger a adolescência
como a fase das grandes transformações biopsicológicas e sociais responsáveis
pelo último grande impulso do processo do desenvolvimento humano e como o
período das realizações fundamentais e do “acabamento” final do sujeito, Teorias
psicológicas importantes, como a psicanálise e a epistemologia genética, encer-
ram a periodização do desenvolvimento na adolescência, tomada como a fase de
coroamento das conquistas, transformações e realizações anteriores. De maneira
geral, as teorias psicológicas do desenvolvimento enfatizam a presença das rela-
ções sociais do adolescente como elemento disparador dos fenômenos dessa fase.
A adolescência é considerada a fase de passagem de um círculo social restrito e
primário – a família – para um universo social muito mais amplo e secundário – o
mundo todo. A entrada no “mundo”, a conquista da autonomia, a “independência”
volitiva e intelectual, a superação da tutela econômica e jurídica, são alguns dos
reconhecimentos da prontidão social do adolescente. O senso comum também
reconhece a adolescência como o momento de ingresso no mundo adulto e na
sociedade mais ampla.
Tal ingresso no mundo adulto é repleto de rituais que consagram essa tran-
sição. O menino é visto como aquele que está se tornando, definitivamente, “ho-
mem”: a barba, a sexualidade, a inserção no trabalho, a saída de casa, o serviço
militar, são alguns dos tantos signos desses rituais de passagem. A menina, além
de passar por imagens similares àquelas que denotam a transformação do menino
em “homem”, como o reconhecimento de sua sexualidade ou as saídas mais fre-
qüentes e duradouras de casa para estudar, trabalhar ou para o lazer, vive sua
transformação em “mulher” em rituais específicos como a tradicional cerimônia
de debutante, na classe média. O senso comum, especialmente nas classes popula-
res, possui uma infinidade de códigos de reconhecimento do adolescente como
um quase-adulto, incluindo até mesmo seu reconhecimento como alguém hostil e
temido.
São notáveis em todas essas representações da adolescência, pela ciência
ou pelo senso comum, referências às mudanças, principalmente no campo social.
Em ambos os casos é marcante a retratação do adolescente como alguém bastante
suscetível a influências sociais e participante da vida pública aqui entendida sim-
plesmente como as relações sociais travadas no espaço público, o que inclui todo
o espaço da vida noturna, por exemplo.
Essa relação íntima da adolescência com o espaço social talvez expresse
mesmo um momento privilegiado para a compreensão das injunções sociais no
sujeito. Talvez, mais do que em outras idades, a adolescência expresse as tendên-
cias e contradições de um tempo e lugar ou da história, da sociedade e da cultura,
devido à sua maior exposição e sensibilidade às questões e idiossincrasias da
contemporaneidade. Também é provável que aconteça essa maior exposição ao
mundo porque não há uma blindagem no plano micropolítico, como ocorre com a
criança, quando os pais conseguem amortecer o impacto dos problemas sociais.
Além disso, o adolescente não possui, como um adulto ou um idoso, um lastro de
defesas egóicas capaz de aliviar o impacto na subjetividade de mudanças no cená-
rio socioeconômico e cultural.
Por isso mesmo os fenômenos típicos da adolescência são expressões privi-
legiadas das tendências da contemporaneidade que ressoam com maior rapidez e
transparência. Não é à toa que questões como a violência, o uso de drogas, o
desemprego e a inserção no mercado de trabalho tornam-se mais agudas ou se
expressam com maior radicalidade nessa fase.
É com o propósito de compreender as vicissitudes da sociedade contempo-
rânea que nos propomos a desenvolver aqui algumas reflexões sobre os relaciona-
mentos afetivos e amorosos na adolescência.
A valorização da adolescência, amplamente expressa na cultura ocidental,
no século XX, recebeu um reforço adicional na cultura brasileira bastante afeita à
novidade, inovação, mudança e outros atributos infundidos a esse período da vida.
Como é sobejamente apregoado, a cultura brasileira, diferentemente da Européia
ou da dos países Andinos, por exemplo, não se baseia em tradições milenares, no
cultivo da memória social, na evocação de acontecimentos fundadores da nação,
em celebrações de seus feitos fundamentais, em símbolos expressivos de uma
identidade nacional e assim por diante.
Tal como afirma Calligaris (1992), a formação da cultura brasileira, funda-
da na ruptura do imigrante com suas referências anteriores – a pátria abandonada
– alimenta-se do corte ou negação do passado e da extrema valorização do novo,
do presente e do futuro. Segundo o autor, a própria denominação de muitas cida-
des denota esse ideário de ruptura e refundação da vida no eldorado brasileiro:
“Nova” Friburgo, “Nova” Odessa, “Nova” Hamburgo e assim por diante.
Essa necessidade de renomear com o prefixo “novo” antigas e tradicionais
cidades européias indica a intenção de recriar o antigo completamente, dar-lhe
uma feição totalmente inovadora, com toda certeza retirando-lhe tudo que pudes-
se enfeiá-lo ou significar algum sofrimento.
A cultura brasileira nasce de um encontro ou de um confronto, como se
queira, de três raças – o branco europeu, o negro africano e o vermelho indígena –
como enfatizam Azevedo (1963) e Freyre (1936). Apesar da desigualdade
estabelecida entre elas pela forte dominação do europeu, subsistiu a miscigenação
como acontecimento inevitável que deixou traços marcantes da cultura brasileira,
entre eles, a abertura para o novo, o diferente, o estrangeiro, mesmo dentro de
estruturas familiais patriarcais rígidas e autoritárias. A sexualidade é destacada
por esses autores como algo que exerce um papel fundamental na gênese e na
constituição da brasilidade. Azevedo chega a tomar o romance Iracema de José de
Alencar como demonstração simbólica do “amor que as filhas do país tinham ao
aventureiro branco” e como uma metáfora das “núpcias da terra virgem” com o
“colono civilizador” (AZEVEDO, 1963, p. 69). Freyre (2000), centrando-se nas
transformações geradas pela instauração do regime republicano, defronta-se exa-
tamente com a questão de entender de que forma se manteve a organicidade social
e a unidade nacional com a ebulição dos interesses progressistas que mudavam,
inclusive, a orientação da bússola brasileira da Europa para os EUA. As respostas,
nada simples, passam pela capacidade de permanência de certas estruturas por
meio de ritos e a inserção de novas relações econômicas e sociais com a vinda de
imigrantes.
Com todos os percalços, ambigüidades e contradições a cultura brasileira
soube conviver, articular e sintetizar, num tempo e modo próprios, o espírito con-
servador com o progressista, o culto às tradições com a valorização do novo e do
estrangeiro. O slogan “Ordem e Progresso”, que não está por acaso no centro da
bandeira nacional, expressa exatamente o ideal modernizador assentado na disci-
plina rígida e no desenvolvimento tecnológico-industrial.
RESUMO
O ficar é um relacionamento afetivo bastante popular entre os adolescentes
e caracteriza-se por ser breve, passageiro, imediatista, volátil e
descompromissado. Análises comparativas demonstram que o ficar obedece
à mesma lógica que rege outros relacionamentos. Seu caráter provisório e
efêmero está presente, por exemplo, na abreviação dos vínculos empregatícios
e na rarefação de relacionamentos outrora sólidos e duradouros tais como
os de vizinhança e familiais. Vive-se hoje uma condição de aceleração do
tempo, alargamento de espaço e movimentação humana sem precedente,
impeditiva de vinculações psicossociais estáveis e prolongadas em todos os
planos da vida: do amor ao trabalho.
Palavras-chave: Ficar; adolescência. Relacionamento. Afetividade.
Contemporaneidade.
“To stay with” (“ficar”) among teenagers
and paradigms of love ties nowadays
ABSTRACT
“To stay with” someone (“ficar”) is a quite popular affective type of
relationship among teenagers and it is characterized by being brief, fleeting,
immediate, fickle and without commitment. Comparative analyses show that
“to stay with”(“ficar”) follows the same logic which governs fixed ties in
other types of relationship. Its particularly provisory and fleeting feature is
found, for example, in professional ties in short-term employment, in
relationships which were once long-lasting and steady, such as that among
neighbours, not to mention family ties. Nowadays, one lives an unprecedented
process of time acceleration, space expansion and human rush, which makes
it impossible to establish stable and lasting psychosocial ties at all levels of
life: from love to work.
INTRODUÇÃO
Mais do que outras idades da vida, a adolescência passou a ser reconhecida
e representada como um período de forte presença das chamadas “influências so-
ciais” no funcionamento psicológico e na constituição do sujeito. As figurações
sobre o adolescente e a adolescência aludem, freqüentemente, e não é de hoje, a
conflitos com o mundo, com os pais e com os adultos. Imagens de rebeldia,
inconformismo, idealismo, vanguardismo, mudança, revolução e tantas outras alu-
sivas a confrontos e ao espírito de transformação do mundo estiveram bastante
associadas a esse período da vida. Aliás, tais imagens foram exaustivamente utili-
zadas para a instituição dessa fase da vida como um período singular, diferenciado
dos demais e altamente valorizado.
A adolescência, sobretudo no século XX, foi elevada como representante e
expressão máxima da juventude, da potência, da beleza, da liberdade, do gozo, do
espírito crítico e contestador, do progresso, da disposição para a mudança e de
tantos outros atributos que a tornaram uma fase bastante prestigiada e cobiçada. É
verdade, também, que essa fase foi vista como momento de vivência das grandes
crises (afetivas, emocionais, de identidade, de valores etc.) e sofrimentos. Porém,
tais crises foram consideradas positivas e construtivas já que o saldo final sempre
representava um ganho e melhoria do sujeito. Aliás, a própria idéia de crise alude
a movimento, mudanças, ruptura e desestruturação que, embora possam estar as-
sociadas a sofrimentos, trazem como significação básica a potencialização da vida
e a dinamização do sujeito e do seu mundo. A chamada “crise da adolescência”
sempre foi referida com signos situados em corredores semânticos meliorativos
diferentemente de “crises” de outras idades semiotizadas em corredores semânti-
cos pejorativos, como é o caso da aludida “crise do envelhecimento” ou da “apo-
sentadoria”, inevitavelmente associadas a imagens de degradação, desvitalização,
enfraquecimento etc..
Tanto a ciência como o senso comum acabaram por eleger a adolescência
como a fase das grandes transformações biopsicológicas e sociais responsáveis
pelo último grande impulso do processo do desenvolvimento humano e como o
período das realizações fundamentais e do “acabamento” final do sujeito, Teorias
psicológicas importantes, como a psicanálise e a epistemologia genética, encer-
ram a periodização do desenvolvimento na adolescência, tomada como a fase de
coroamento das conquistas, transformações e realizações anteriores. De maneira
geral, as teorias psicológicas do desenvolvimento enfatizam a presença das rela-
ções sociais do adolescente como elemento disparador dos fenômenos dessa fase.
A adolescência é considerada a fase de passagem de um círculo social restrito e
primário – a família – para um universo social muito mais amplo e secundário – o
mundo todo. A entrada no “mundo”, a conquista da autonomia, a “independência”
volitiva e intelectual, a superação da tutela econômica e jurídica, são alguns dos
reconhecimentos da prontidão social do adolescente. O senso comum também
reconhece a adolescência como o momento de ingresso no mundo adulto e na
sociedade mais ampla.
Tal ingresso no mundo adulto é repleto de rituais que consagram essa tran-
sição. O menino é visto como aquele que está se tornando, definitivamente, “ho-
mem”: a barba, a sexualidade, a inserção no trabalho, a saída de casa, o serviço
militar, são alguns dos tantos signos desses rituais de passagem. A menina, além
de passar por imagens similares àquelas que denotam a transformação do menino
em “homem”, como o reconhecimento de sua sexualidade ou as saídas mais fre-
qüentes e duradouras de casa para estudar, trabalhar ou para o lazer, vive sua
transformação em “mulher” em rituais específicos como a tradicional cerimônia
de debutante, na classe média. O senso comum, especialmente nas classes popula-
res, possui uma infinidade de códigos de reconhecimento do adolescente como
um quase-adulto, incluindo até mesmo seu reconhecimento como alguém hostil e
temido.
São notáveis em todas essas representações da adolescência, pela ciência
ou pelo senso comum, referências às mudanças, principalmente no campo social.
Em ambos os casos é marcante a retratação do adolescente como alguém bastante
suscetível a influências sociais e participante da vida pública aqui entendida sim-
plesmente como as relações sociais travadas no espaço público, o que inclui todo
o espaço da vida noturna, por exemplo.
Essa relação íntima da adolescência com o espaço social talvez expresse
mesmo um momento privilegiado para a compreensão das injunções sociais no
sujeito. Talvez, mais do que em outras idades, a adolescência expresse as tendên-
cias e contradições de um tempo e lugar ou da história, da sociedade e da cultura,
devido à sua maior exposição e sensibilidade às questões e idiossincrasias da
contemporaneidade. Também é provável que aconteça essa maior exposição ao
mundo porque não há uma blindagem no plano micropolítico, como ocorre com a
criança, quando os pais conseguem amortecer o impacto dos problemas sociais.
Além disso, o adolescente não possui, como um adulto ou um idoso, um lastro de
defesas egóicas capaz de aliviar o impacto na subjetividade de mudanças no cená-
rio socioeconômico e cultural.
Por isso mesmo os fenômenos típicos da adolescência são expressões privi-
legiadas das tendências da contemporaneidade que ressoam com maior rapidez e
transparência. Não é à toa que questões como a violência, o uso de drogas, o
desemprego e a inserção no mercado de trabalho tornam-se mais agudas ou se
expressam com maior radicalidade nessa fase.
É com o propósito de compreender as vicissitudes da sociedade contempo-
rânea que nos propomos a desenvolver aqui algumas reflexões sobre os relaciona-
mentos afetivos e amorosos na adolescência.
A valorização da adolescência, amplamente expressa na cultura ocidental,
no século XX, recebeu um reforço adicional na cultura brasileira bastante afeita à
novidade, inovação, mudança e outros atributos infundidos a esse período da vida.
Como é sobejamente apregoado, a cultura brasileira, diferentemente da Européia
ou da dos países Andinos, por exemplo, não se baseia em tradições milenares, no
cultivo da memória social, na evocação de acontecimentos fundadores da nação,
em celebrações de seus feitos fundamentais, em símbolos expressivos de uma
identidade nacional e assim por diante.
Tal como afirma Calligaris (1992), a formação da cultura brasileira, funda-
da na ruptura do imigrante com suas referências anteriores – a pátria abandonada
– alimenta-se do corte ou negação do passado e da extrema valorização do novo,
do presente e do futuro. Segundo o autor, a própria denominação de muitas cida-
des denota esse ideário de ruptura e refundação da vida no eldorado brasileiro:
“Nova” Friburgo, “Nova” Odessa, “Nova” Hamburgo e assim por diante.
Essa necessidade de renomear com o prefixo “novo” antigas e tradicionais
cidades européias indica a intenção de recriar o antigo completamente, dar-lhe
uma feição totalmente inovadora, com toda certeza retirando-lhe tudo que pudes-
se enfeiá-lo ou significar algum sofrimento.
A cultura brasileira nasce de um encontro ou de um confronto, como se
queira, de três raças – o branco europeu, o negro africano e o vermelho indígena –
como enfatizam Azevedo (1963) e Freyre (1936). Apesar da desigualdade
estabelecida entre elas pela forte dominação do europeu, subsistiu a miscigenação
como acontecimento inevitável que deixou traços marcantes da cultura brasileira,
entre eles, a abertura para o novo, o diferente, o estrangeiro, mesmo dentro de
estruturas familiais patriarcais rígidas e autoritárias. A sexualidade é destacada
por esses autores como algo que exerce um papel fundamental na gênese e na
constituição da brasilidade. Azevedo chega a tomar o romance Iracema de José de
Alencar como demonstração simbólica do “amor que as filhas do país tinham ao
aventureiro branco” e como uma metáfora das “núpcias da terra virgem” com o
“colono civilizador” (AZEVEDO, 1963, p. 69). Freyre (2000), centrando-se nas
transformações geradas pela instauração do regime republicano, defronta-se exa-
tamente com a questão de entender de que forma se manteve a organicidade social
e a unidade nacional com a ebulição dos interesses progressistas que mudavam,
inclusive, a orientação da bússola brasileira da Europa para os EUA. As respostas,
nada simples, passam pela capacidade de permanência de certas estruturas por
meio de ritos e a inserção de novas relações econômicas e sociais com a vinda de
imigrantes.
Com todos os percalços, ambigüidades e contradições a cultura brasileira
soube conviver, articular e sintetizar, num tempo e modo próprios, o espírito con-
servador com o progressista, o culto às tradições com a valorização do novo e do
estrangeiro. O slogan “Ordem e Progresso”, que não está por acaso no centro da
bandeira nacional, expressa exatamente o ideal modernizador assentado na disci-
plina rígida e no desenvolvimento tecnológico-industrial.